terça-feira, outubro 31, 2006

"Republico mesmo!" Parte 1 - Sobre amigos e universos semânticos

Amigos são a família que escolhemos ter. A frase é um clichê antigo, mas válido. Contudo, cabe acrescentar que essa escolha é sempre limitada pelo nosso pequeno universo. Na nossa sociedade pós-moderna, onde os homens correm a todo instante atrás de seus horários e atividades,invertendo a ordem minimamente inteligível das coisas,ninguém perde tempo com atividades fúteis como fazer amigos. Se podemos ao mesmo tempo estar na faculdade e faze-los, tudo bem. Se não, sobrevivemos sem eles. Desta forma, nosso universo de amizades torna-se bastante limitado. Os amigos da faculdade, os amigos do trabalho... O mundo capitalista das maravilhas consumíveis forma pessoas cada vez mais limitadas, presas nos seus próprios mundinhos.
Refletindo sobre isso, pensei nos amigos de infância. No quanto é embaraçoso encontrá-los. É estranho demais... Algumas pessoas chegam a evitar esse tipo de encontro. O motivo é simples: depois dos cumprimentos, a única pergunta que sobra é " e ai, como você tá?" . Depois disso, o papo que sobra é inversamente proporcional à quantidade de tempo que essa pessoa deixou de fazer parte de seu "mundo". Amigos deixam de serem amigos cada vez mais rápido, nos dias de hoje. E por que será?
Sem querer afirmar, com todas as letras, que a Antropologia pode nos ajudar a refletir sobre inúmeras dessas questões intrigantes - nem muito menos confessar que ela pode acabar fundindo de vez a cuca dos que se entregarem totalmente aos seus "objetivos" -, digo que a noção de universo semântico, usada como pano de fundo por Geertz em "A Interpretação das Culturas", é muito válida nesse sentido. Geertz, interessando em entender culturas diversas da sua, supõe que, havendo dois universos semânticos, ou campos de significação do real( ou ainda simplesmente culturas) diversos, a zona de interpenetração entre eles permitiria uma compreensão, por parte do antropólogo, de alguns aspectos da cultura alheia. Essa interpretação teria como consequência um aumento da área de interpenetração entre as culturas, fazendo com que fosse possivel, a cada novo aumento, entender mais e mais aspectos de uma cultura diversa. É bem mais fácil entender se os amigos pensarem naqueles esquemas que nossos ilustres professores de matemática usavam para representar conjuntos numéricos que possuem números em comum. É como se a intersecção crescesse a cada nova interpetração antropológica.
Se ficou chato, não importa muito; o que queria era resgatar a idéia de universo semântico. É engraçado como na nossa atual sociedade os universos semânticos se subdividem e, por consequência, se mutiplicam a cada dia, a ponto de você não conseguir estabelecer um diálogo de mais de três minutos com alguém que fora seu bom amigo a pouquíssimo tempo. As pessoas estão cada vez mais enfiadas em suas atividades, nos seus horários, nos seus problemas, que acabam reduzindo ao limite extremo sua rede de amigos ( reais, orkut não vale...). É aquela história, antes tinhamos pessoas que sabiam quase nada de quase tudo; hoje, nos tempos do "especialista", temos pessoas que sabem quase tudo de quase nada. Um doutor em articulações dos dedos do pé... Me diga, caro leitor, o que você poderia conversar com um doutor em dedos dos pés?
Soluções para tal mal do mundo pós-moderno não são assim tão fáceis. Talvez um pouco de atitude "antropológica", no sentido de estar sempre querendo avançar no universo semântico dos velhos amigos, exigiria muita disciplina, além de uma coragem enorme de se empenhar numa atividade que poderia deixar qualquer um maluco...Em que cabeça cabe, tudo junto, o universo semântico daquele doutor em dedos do pé e de um cobrador de ônibus, por exemplo? Ser antropólogo é dar um passo largo em direção à loucura... Tô fora!

segunda-feira, outubro 30, 2006

Nietzsche, Parsons e o Crime

Estava retornando da Faculdade para casa em uma manhã rotineira: vazia, sonolenta e triste. Como de costume, estava no ônibus, dividindo meu tempo entre breves cochilos e devaneios filosóficos. Ao parar no ponto de ônibus do Hospital Sarah (vou escrever só Sarah, pois não sei escrever Kubistchek), uma cena insólita acontece: um ladrão rouba a bolsa de uma garota que, como defesa, começa a gritar muito. A confusão se estabelece: eu despertei de devaneios e cochilos; as pessoas se alvoroçavam, gritavam “pega ladrão”, comentavam o ocorrido e lamentavam a situação de insegurança que acomete a todos aqueles que não podem se trancar em guetos voluntários de elite; os ladrões correm. Eu permaneci em meu lugar. E confortavelmente sentado vi os três ladrões atravessarem a Avenida Tancredo Neves. Eram menos do que adolescentes e o mais velho não aparentava ter mais de doze anos de idade. O que carregava a bolsa beirava os dez anos. Era claro que a correria tinha um destino: um matagal próximo. De repente, surge o segurança de uma loja de móveis com arma em punho e bang! Dois tiros se ouvem. Mais alvoroço. O segurança mirou claramente no peito dos meliantes. Graças a sua imbecilidade congênita errou o alvo. Os garotos ladrões fugiram. A vítima ficou no ponto de ônibus. Este, por sua vez, seguiu viagem. Eu voltei aos meus devaneios. E a manhã rotineira: vazia, sonolenta e triste.

Contudo, flagrei-me em devaneios que levaram em conta a situação passada. Ouvindo a manada mugir que ladrões deveriam ser extintos da face da Terra, lembrei-me imediatamente de Nietzsche, para o qual os criminosos são homens fortes – super-homens – em situação desfavorável. Para o filósofo, a moral cristã enfraqueceu os homens e os incita a permanecerem quietos e dóceis, mesmo quando explorados – a recompensa estaria no reino dos céus. O criminoso, no entanto, não se deixa enganar como a manada pacífica: quebra as normas e cria as suas próprias – a sobrevivência digna como fim em si mesma. Se ninguém lhe reconhece a dignidade, então que sofram as conseqüências. Na sociedade de consumo a situação se agrava, pois os indivíduos são inseridos na sociedade através de seu potencial econômico. Esta é a nova condição de cidadania: a substituição do cidadão pelo consumidor. No entanto, o desemprego estrutural tem alijado milhões de pessoas da esfera do consumo. Que fazer, então? A manada vai para a Igreja Universal. Os fortes vão para o crime.

Obviamente, não gostaria de ter sido a vítima dos marginais. A questão aqui não é de complacência com os criminosos, vontade de ser seu amiguinho ou de assumir o lugar de suas vítimas. Trata-se, aqui, de uma tentativa de análise amoral dos fatos. Também não é uma análise ao nível individual, mas estrutural. E a estrutura excludente fabrica ladrões de dez anos de idade. Podem criar FEBEMs. Elas irão profissionalizá-los.

Também é certo que, desde Durkheim e mais especificamente com o funcionalismo parsoniano, o crime é, ao nível sociológico, encarado como patologia social, disfunção ou desvio. De fato, também é verdade que, independente das causas do crime, a sociedade criará mecanismos de punição aos criminosos. Isso é o óbvio. Não fosse o Parsons tão imbecil perceberia, contudo, que os índices de criminalidade variam de sociedade a sociedade e, na mesma sociedade, de tempos a tempos, devido não a disfuncionalidade intrínseca previsível em qualquer sistema social, mas devido a condição social na qual vivem parte dos indivíduos em relação àquilo que a sociedade considera a vida digna. Daí diferenças de criminalidade entre Suécia e Brasil se explicarem ao nível social e não em referências a essências suecas ou brasileiras.

Resumindo. Ao nível social, a desigualdade cria o criminoso. É aquela velha questão do "a sociedade cria o crime, o criminoso o executa". Ao nível filosófico, este é o homem forte, que se recusa a ceder às falácias da Igreja Universal e vai de encontro a toda moral judaico-cristã estabelecida - se a moral é ajudar o próximo, este o estraçalha. Ao nível individual, que cada um se proteja! Estamos na sociedade do individualismo extremo onde a máxima é “salve-se quem puder”!

domingo, outubro 22, 2006

Um olhar de um pseudo-sociólogo turista sobre a cidade maravilhosa

Caros amigos, para os que não sabem, eu estou passando alguns dias no Rio de Janeiro. Eu gostaria de fazer um relato de um turista que se apaixonou perdidamente pela cidade. Sinceramente, agora entendo quando meus amigos diziam que Salvador é uma província, um feudo. Salvador é, simplesmente, um lixo, como diz um amigo meu, comparado ao Rio de Janeiro. Pelo que vi - e só posso dizer do que vi, obviamente -, o Rio de Janeiro é muito melhor que Salvador. Digo isto também porque estou hospedado no Leblon e, até agora, só visitei os pontos turistícos, seguros e bonitos da cidade. Claro está, também, que estou completamente encantando com a cidade e, neste momento, não tenho condições mínimas de tentar manter a minha objetividade. Mas, enfim, o Rio de Janeiro é, simplesmente, lindo. O clima é totalmente diferente. É possível ver as pessoas aproveitando a sua cidade, andando no calçadão, usufruindo das praças e desenvolvendo uma sociabilidade - ainda que seja entre iguais, como vou falar mais adiante. Uma outra coisa que me chamou minha atenção, e como não poderia deixar de ser, pois sou filho de minha sociedade, foram as mulheres. As mulheres daqui são lindas demais. Meu Deus!!!!!!!!! Como as cariocas são lindas, cheirosas, arrumadas, sofisticadas, charmosas. Realmente, cheguei a conclusão de que Salvador não chega aos pés do Rio, ainda que as mulheres de Salvador, talvez, possam dizer que os homens de Salvador não chegam aos pés dos homens do Rio. Uma assertiva não anula a outra. Realmente, gostaria de parar por aqui, mas, como pretenso sociólogo, não pude deixar de observar três coisas que chamaram muito a minha atenção aqui no Rio:
1. Da incivilidade da classe média carioca e do estresse como bem comum
Meus queridos amigos, pude sentir como a elite pode ser bossal e exclusivista. Ao contrário da elite de Salvador, a elite do Rio aproveita a estrutura urbana e as opções de lazer público que a cidade lhes oferece. Em Salvador, a elite frequenta apenas os espaços privados e no máximo a praia de Alelúia, nos finais de semana. Entretanto, aqui no Rio, pude perceber como a elite é incivilizada, estressada e egoísta. Vou lhes contar três situações vividas por mim e por Léo, meu companheiro de bolsa de pesquisa e de viagem. A primeira situação foi quando estávamos saindo do prédio onde estamos hospedados, com duas bicicletas. Estávamos sem as chaves da porta do fundo e decidimos sair pela frente quando uma velha nos "flagrou" e fez questão de nos dar o maior sermão. O problema não foi o sermão, mas a falta de civilidade com que ela nos tratou, reclamando que o pessoal não liga para o prédio e coisas afins. O problema é que explicamos a ela que éramos hóspedes de um dos apartamentos e que, no momento em que estávamos saindo, não havia nenhum dos nossos anfitriões para nos orientar como agir, ao sair com as bicicletas. Ainda assim, a velha nos encheu o saco e saiu resmungando, mesmo com todo o nosso cuidado de pedir desculpas e explicar a situação. Ao pedirmos desculpas, ela respondeu: "Tudo bem. Já me chateei mesmo!". Enfim, as outras situações foram no calçadão e nas ruas internas do Leblon. Por duas vezes, eu observei as pessoas se estressando com as outras porque estas últimas estavam conversando no meio da passagem. Os comentários foram, mais ou menos, esses: "Que droga. Esse povo pára e não deixa a gente passar direito." Uma outra vez, no calçadão, estávamos pedalando tranquilamente e em paz quando uma mulher passou e reclamou: "Presta mais atenção". Ah, há ainda outra situação. Hoje, quando estávamos no Cristo, Léo subiu no parapeito para tirar uma foto. Logo que ele subiu, e antes que eu pudesse bater uma foto, mais uma vez, uma velha teve o prazer de dizer que era proibido e saiu dando risada, com um prazer quase sádico. Sinceramente, eu achei os cariocas de elite muito chatos, principalmente as pessoas mais idosas. Me perdoem a gerontofobia, mas que povo insuportável, raNzinza e incivilizado. Observei que embora a sociabilidade pareça florecer nos espaços públicos do Rio, ela é marcada por essa incivilidade e pela separação dos diferentes - disto eu falarei mais adiante, quando for falar do padrão racial da segregação no Rio. Uma outra coisa sobre a incivilidade é o estresse que vi nortear a relação entre as pessoas. Neste momento, não falo apenas da elite, pois vi estas cenas ocorrerem com trabalhadores. Na primeira situação, um caixa de uma agência de turismo atende uma ligação quando um cliente - que se anuncia como Coronel - pede para ele ver na loja do lado a cotação da libra. O caixa estava nos atendendo e não pôde sair para ver a cotação e passou a ligação para algum superior que passou o pedido para o caixa do lado. Neste momento, o caixa que estava no atendendo começou a reclamar e se estressar, dizendo que o coronel do telefonema e o seu chefe iam pensar que ele não foi ver o cambio por má vontade. Quando o outro caixa voltou, começou um bate-boca no meio da loja e na frente dos clientes. Quando, enfim, terminou, o caixa que estava nos atendendo falou: "Xó porque é coroniel, acha que eu tenho obrigaxção. Vai txi laxcar", em bom "carioquês", o que me fez dar boas risadas depois. Continuando, vi duas brigas no trânsito também. Um fiscal discutindo com um motorista que parou no lugar errado e um taxista muito "cavalo", me perdoem o termo chulo, que fez questão de parar e xingar uma mulher que estava dirigindo o carro da frente, apenas porque ela parou um pouco perto do meio fio para se certificar de onde deveria entrar. O taxista foi, realmente, muito bruto e estúpido com a mulher, a ponto de eu ter vontade de intervir. Mas, enfim, achei os cariocas muito estressados e, demasiadamente, incivilizados. Na verdade, nem todos. Tive o prazer de fazer amizade com uma vendedora de cerveja da Lapa e ela foi muito simpática conosco. Na verdade, eu acho que o habitus de classe explica um pouco da incivilidade da elite e a pressão pela manutenção da vida cotidiana pode ajudar a explicar os motivos do estresse nas relações ou nos horários de trabalho. Entretanto, isso não impede que eu diga que achei essa cidade muito incivilizada em termos de relações interpessoais.
2. O padrão racista da segregação socioespacial
Neste ponto, a minha observação é meio que um truísmo. Mas, realmente, pude percebê-la na prática. Por toda a Zona Sul, ou pelos lugares que andei - Copacabana, Leblon, Ipanema, Arpoador, Lapa (um pouco menos) -, quase não avistei negros frequentando os lugares, apenas como trabalhadores. Me estranhou, principalmente, o Leblon. Eu quase não vi negros no Leblon, com excessão, como disse, dos trabalhadores. Mesmo sem ter ido a nenhuma favela ou a nenhum bairro popular, eu pude perceber como a Zona Sul é um mundo diferenciado, porém, artificial. É uma área totalmente dotada de estrutura, segurança, uma orla linda e totalmente exclusivista. Bom, assim eu pude perceber. A hipótese óbvia da divisão histórica da sociedade brasileira - negros x brancos - continua a existir, pois, no Rio, enquanto os negros moram nas favelas, a elite branca vive uma existência diferenciada, morando no Leblon e se assistindo todas as noites na tela da globo, enquanto que os negros e favelados apenas se assistem no Jornal Nacional quando há tiroteios e mortes no Rio, dos quais eles acabam sendo culpados pelo imaginário social.
3. O medo da violência atrapalha as relações de sociabilidade?
Uma outra coisa que me chamou muito a atenção foi a questão do transporte coletivo. Primeiro que me surpreendeu saber que os ônibus rodam 24h, enquanto em Salvador, as 22:00h, as pessoas já ficam com medo de não voltar mais para casa. Eu sai do Leblon as 22:30h, de ônibus, em direção á Lapa e voltei as 1h da manhã, chegando no Leblon as 1:40h. Ainda tive que andar uns 10min pelas ruas do Rio de Janeiro e de madrugada até chegar no local onde estou hospedado. Confesso que, antes de ir á Lapa, estava com um pouco de receio. Mas, na volta, não tive receio nenhum. Não tive o mínimo medo de andar pelas ruas do Rio de Janeiro, de madrugada (é bom frizar). Interessante como as pessoas também não parecem ter medo de manter seus hábitos e costumes. Uma coisa que me chamou a atenção foi o ônibus. O ônibus que peguei passou pelo Leblon, Ipanema, Copacabana e Botafogo. Em todos estes bairros, que me parecem ser de classe média alta, fora Botafogo que ainda me parece um pouco mais de nível médio, eu vi pessoas destas classes se utilizando do transporte coletivo em plena noite. Isso não acontece em Salvador. A elite de Salvador não anda de ônibus, e ainda mais, para ir à festas a noite. Isso, para mim, foi uma surpresa. Eu vi não apenas jovens de classe média pegando ônibus no sábado a noite, mas também pessoas um pouco mais velhas, mas todos de classe média. Aí eu me pergunto, o Rio de Janeiro é tão violento como nos mostra a mídia ou a violência não chega nos bairros da Zona Sul e nos pontos turísticos? Eu cheguei a uma conclusão preliminar depois que um dos nossos anfitriões disse que nunca foi assaltado no Leblon e nunca ouviu ninguém dizer que foi assaltado por essas áreas. Para mim,parece que o Rio de Janeiro oferece uma qualidade de vida alta para suas elites, principalmente para aqueles que vivem na Zona Sul, enquanto que, durante a noite, o BOP (Batalhão de Operações Especiais da PMRJ) sobe o morro no Caveirão - carro parecido com um tanque de guerra, a prova de balas - para continuar a guerra do poder público contra os favelados.

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tou começando a adorar esse negócio de caps lock

quarta-feira, outubro 11, 2006

Em busca da terra do nunca

Juventude. Fase da vida repleta de sonhos. Repleta, também, de mudanças. E a cada mudança na vida, muda-se também a vida. Cada término, um novo recomeço. Às vezes muda-se tudo. E do velho restam apenas as boas lembranças. E nas lembranças, até o que foi vivido como algo ruim transmuta-se milagrosamente em algo bom; o que foi amargo passa a ser uma doce lembrança de um tempo que se foi. Fica sempre a impressão de que uma parte de nós mesmos foi junto com o tempo e que agora somos já uma outra coisa: mais maduros, sim, mas também menos crianças – o que é grave.

Há cerca de um mês atrás um ex-colega meu de segundo grau me enviou uma mensagem de celular. Tinha ido morar no interior do estado e havia acabado de retornar à capital para trabalhar. Não nos vemos desde o término do terceiro ano. Éramos muito bons amigos e dividimos momentos maravilhosos juntos. Lembro de todas as nossas bagunças – e olha que éramos demasiado bagunceiros. Mas ele já não é ele. Eu já não sou eu. Ambos mudaram. Ele se tornou um trabalhador não sei de que. Eu me tornei um indivíduo intelectualizado que fica lendo Locke e Nietzsche. Há um fosso entre nós. O reencontro passa a ser algo doloroso: ambos descobrem que a dupla de amigos do segundo grau já não mais existe. Resta apenas a lembrança.

Esta situação me fez lembrar que em junho do ano que vem eu concluo o terceiro grau. Será mais uma transição do tipo acima colocada. Mais uma vez haverá a despedida de amigos feitos que prometerão manter o contato, pactos serão tecidos em vista de manter a ligação amical, mas a maior parte nunca mais se verá – ou quando eventualmente se ver já não se saberá mais como agir um em relação ao outro. Será uma situação no mínimo desconfortável, racional, cautelosa e distante. A amizade escolar tem um contexto e encerrado o contexto encerra-se a amizade.

O grupo que hoje compõe este blog é bem sintomático do que digo. Sete indivíduos que entraram juntos no curso, em 2003, e conviveram até o final. Não sem momentos de estranhamento mútuo e distanciamento. Questões políticas, ideológicas, pessoais etc causaram distâncias que, às vezes, duraram semestres. Poderia ser traçada uma curva estatística de densidade amical que resultaria em uma parábola: no início, uma grande amizade regada a álcool e bagunça; depois um distanciamento; por fim, a religação mítica através do contato acadêmico que se transformou em um contato endêmico. Nunca a amizade foi tão forte: encontros ao sábados, chapa renovadora para o D.A., cervejas, conversas, discussões, brincadeiras e jocosidades, atravessamentos, caranguejos e papos de MSN. Agora pressente-se que o momento da despedida se aproxima.

A situação é particularmente mais grave em relação a dois colegas que provavelmente nos deixarão por um tempo para curtir ares mais civilizados no centro mundial do capitalismo. Ao voltarem, eu estarei saindo. Se tudo der certo saio de Salvador, e aí o distanciamento estará completado.

Não falo do distanciamento total, da ausência de um contato esporádico e burocrático; ademais, resta ainda o contato virtual, proporcionado pelos MSNs e Orkuts. Mas já não mais será o mesmo tipo de contato. Poderemos ser um dia colegas de departamento, mas aquela amizade bonita era do tempo de graduação. Poderá surgir uma nova amizade bonita, mas será sempre de um outro tipo. Ao concluirmos o nosso curso, concluímos socialmente uma fase de nossa vida: crescemos.

É assim que hoje entendo colegas que fazem de São Lázaro uma moradia e recusam-se a completar seus cursos. São como Peter Pan e recusam-se a crescer; recusam-se a entrar numa nova fase que já não comporta os sonhos pueris compartilhados tão fortemente em coletividade; recusam-se a entrar no mundo real da competição e da solidão. É ainda um resquício da tentativa de construção de um mundo alternativo que tanto empolgou a juventude nas décadas de 60 e 70. No entanto, a realidade está às portas e parece que todos deste blog por elas entrarão. Transporemos juntos a portinha do EXIT mostrada no Show de Truman, mas do lado de fora inevitavelmente nos despediremos. Cada qual terá que cuidar de si, tomar seu próprio rumo, pois este é o peso que a responsabilidade existencial, como nos diz Sartre, nos coloca. Restará sempre, no entanto, a lembrança daquilo que foi sublime; do contato que nos acrescentou e nos deu uma transcendência momentânea.

Virão sempre outros contatos e sempre outras despedidas. E que não sejamos tão infelizes a ponto de perdermos de vista a busca da terra do nunca.

terça-feira, outubro 03, 2006

“Uma nuvem se dissipou na Bahia”: sobre um turbilhão.

No domingo, 01/10/2006, os brasileiros voltamos às urnas para escolher novos calhordas e projeto de políticos para as instâncias representativas de nosso país. Com um clima diferenciado do último pleito para presidente fomos às urnas sem o espírito do “estamos votando no salvador da pátria”. Desta vez fomos às urnas para votar num modelo de política que era menos pior (desculpem-me o desagradável trocadilho) para o país. Aqui falo por mim e algumas pessoas mais próximas. Votamos e fomos para nossas casas aguardar o processo de apuração de votos por volta das 17h. Iniciada a contabilização dos votos começamos a nos surpreender com o resultado das urnas na Bahia. Já no início da contagem Wagner apareceu com mais de 50%, numero que se manteve até a totalização. Estava numa festa de aniversário e assim que percebemos que não se tratava de contagem das urnas da capital nas parciais começamos a beber mais para “bebemorarmos” – como se precisássemos de mais um motivo para avançar a embriagueis! Esperei a confirmação da eleição, por volta das 23:30, para ir dormir completamente bêbado. Fui para a cama de alma lavada – num sentido figurado-1 e figurado-2 da expressão “alma lavada”. Acordei percebendo algo diferente naquele dia... me sentia redimido. Preparei-me para ir a faculdade, pois, sem dúvidas, lá teriam pessoas falando deste belíssimo processo e ávidas por falar. Ao chegar ao ponto de ônibus percebi que aquele sentimento de leveza era algo que fluía pelas ruas... Aqui começa a jornada de um pretenso Sócio-antropólogo (ou Antropólogo-social) louco – estava louco por escrever isso”.

Cheguei ao ponto de ônibus e logo percebi que o sentimento inaugurado com o resultado do pleito do domingo, em que Wagner ganhou o governo do estado no primeiro turno, na contramão das pesquisas estatísticas/especulativas (eca!!!), perpassava grande parte dos transeuntes. O vendedor da banca conversava com as sentinelas da corregedoria de polícia do estado sobre a “surra que ACM levou”. A senhora ao meu lado sorriu das gritarias do vendedor com o policial e puxou conversa comigo: “Mas foi lindo, num foi meu filho?! Eu votei no PT porque já tava na hora de mudar (...)”. De repente quatro GT´s, grupos de trabalho, formaram-se ali no ponto de ônibus, para se discutir o novo panorama político do estado, aliás, mentira... para se discutir o cacete que os baianos demos no coronecarlismo... Estávamos conversando, pois precisávamos ser parte daquilo que estava no ar... Precisávamos re-viver a noite passada e a conversa, o falar sobre, a gozação com o “bundão” do ACM, era a forma de sermos parte daquele momento histórico de nosso povo.

Achei legal aquela situação e à medida que os ônibus iam chegando os grupos iam sendo re-configurados. Quando meu ônibus chegou me despedi da turma do ponto e entrei nele com um turbilhão no peito. Já sentado percebi que algumas pessoas falavam sobre a mesma coisa. Comecei a prestar atenção nos argumentos e fiquei encantado com aquele sentimento que nos perpassava. Era algo novo, diferente das eleições presidenciais passada, talvez até mais significativo. Foi então que comecei a pensar no que teria contribuído para esse movimento silencioso que levou 54% da população a destituir o carlismo (mais tarde perceberia, nas ruas, que isso era mais dito, que a própria eleição do candidato petista). Estava mais decidido e não via a hora de chegar ao Pátio Raul Seixas, lócus privilegiado para divagações em nossa capital, pois queria continuar falando sobre o tema. No ônibus já tinha decidido observar e não interagir com os observados.

Chegado ao Pátio, não notei outro assunto. Pequenos grupos, a faculdade estava vazia, conversavam sobre o tema. Tratei de encontrar um, o que não foi difícil. Sentei numa mesa onde os militantes do DA de História deixaram cartazes que estavam sendo fixados na parede. Imediatamente avistei um colega de curso e começamos a conversar sobre a questão. Começamos esta conversa por volta das 09:30, e, entre o entra e sai de pessoas desta mesa, terminamos por volta das 13:30. Inúmeras pessoas passaram por nosso GT no pátio e sempre demonstravam uma euforia com a destituição do carlismo. Um momento auge foi o clima de gozação que se instalou quando um pobre espírito do PSTU resolveu participar do papo. “Se você quiser fazer a discursão agente faz” (o pobre diabo tentava desqualificar a nossa empolgação), pobre coitado... saiu da mesa com um caroço na goela com o que o fizemos ele ouvir e com as risadas. Todos riam da pobre criatura que acusava o PT de ser parte de um projeto neoliberal estruturado pelo FMI...

Após as 13:30 eu e aquele primeiro amigo de pátio nos despedimos e resolvi dar umas voltas pela cidade para sentir mais de perto aquele clima. Queria obervar mais manifestações daquele sentimento de grande número de pessoas. Sentimento que poderia ser sentido nas ruas – uma experiência de politização na vida cotidiana. Saí da faculdade e fui para o Shopping Barra. Algumas pessoas conversavam, mas nada caloroso como tinha percebido até ali. Saí e fui para a região do Farol da Barra. Comprei um coco e o “povo”, o rebanho (como Nietzsche nomeia o que temos chamado de manada), estava exaltado, tal qual minhas primeiras constatações. Sentei num dos bandos públicos e comecei a observar. Novamente regozijei com aquelas calorosas conversas. Era o chamado populacho manifestando algo novo... um sentimento que me parecia ser de quebra de grilhões. A Bahia amanheceu livre de mais de quarenta anos de coronecarlismo. O processo de renovação revigorou os ânimos dos baianos e isso era palpável, era concreto, podia ser experienciado por qualquer um, todos éramos parte de um processo.

Passado algum tempo resolvi ir até a Piedade e ao Pelourinho. Chegado à Praça da Piedade imediatamente me deparei com gritos, com conversas exaltadas, e mãos que sacudiam um jornal do dia. Era um grupo de senhores e dois vendedores de café que conversavam sobre a “merecida surra de ACM”. Sentei ao lado deles e só então me dei conta que aquela eleição valia mais pela destituição que pela própria eleição. Aquela conversa era a mais efervescente de todas. E, por toda a praça só se conversava sobre a vitória de Wagner, a surra de ACM, a cara de Paulo Souto na entrevista, a derrota dupla de ACM com a derrota de Tourinho e Souto nas urnas, entre outros mesmos temas.

Mas foi ouvindo uma outra conversa na “praça da Cruz Caída”, na antiga Sé, que me dei conta de um outro elemento. A propaganda do PT “Vote do time de Wagner e Lula” criou um contra-ponto prático: “Não vote no time de ACM”. Já tinha ouvido isso numa linha de ônibus para o Nordeste de Amaralina: “agente não podia votar de novo no time deles [de ACM]... eles já tem muito tempo aí...”. No pelourinho, dois policiais, três rapazes e uma “baiana” conversavam sobre o assunto do dia e referiam-se ao time de ACM. Em momento algum falaram em time de Wagner e Lula. Por um lado, isso deixava este processo de distituição/eleição mais evidente, por outro a despeito dos números das pesquisas do IBOPE, Data Folha e Vox Populi, a propaganda podia ter motivacionado, insuflado, mexido... numa disposição latente nos baianos. Parecia ser notório o patamar de cinismo dessa manutenção do carlismo na Bahia à base de propagandas. Faltava algo que alavancasse o sentimento contra um esquema político de alternância no poder. Fiquei pensando se o que estava sendo dito sobre a propaganda não apontava para uma eficácia midiática. Foi esta propaganda que deflagrou um processo silenciado pelos números das pesquisas quantitativas-especulativas? O que levou a esse movimento calado de desejo de destituição do coronecarlismo nas urnas? A surpresa dessa destituição-eleição deveu-se a um movimento silencioso para que não houvesse uma decepção maior com re-eleição de Souto? 54% dos eleitores deram seu voto a Wagner na tentativa de um segundo turno?

Deixo estas interrogações, pois não quero especular além do que já fiz. Quero compartilhar um dia de caminhadas pela cidade em busca de sentir mais de perto o turbilhão que movimentava os ânimos daquela segunda-feira. Meu ponto é este sentimento que estava visitando os baianos que se sentiam parte do processo. E porque não dizer todos os baianos? Quando cheguei em casa um dos membros da minha família estava cabisbaixo porque não queria uma re-eleição de Lula e ansiava por uma “surra” no PT. Ele era contra as “safadezas do governo Lula”. A questão é que ele estava emocionalmente afetado com o mesmo processo. Chateado, não gostou, mas algo o incomodava... o mesmo processo de destituição/eleição o atingiu de algum modo. O que percebi foi que o sentimento de “alma lavada” atingiu a todos ou a grande parte dos baianos, de uma forma ou de outra.