domingo, dezembro 24, 2006

Divagações acerca do desespero da existência com auxílio de Fernando Pessoa

Os bebês recém-nascidos – dizem os especialistas em bebês recém-nascidos, bebêlólogos, talvez – sofrem de um tipo peculiar de desespero: o da auto-destruição. Ao se verem desligados do corpo materno, do qual julgavam ser parte, os bebês se sentem soltos na realidade total e não conhecem as fronteiras que limitam o espaço do eu e do não-eu. Em resposta ao simplório gesto de mexer a perna eles podem sofrer graves confusões psíquicas: será que a perna não vai arrancar??

Adultos também sofrem de pesadelos psíquicos como esse. A pulsão de morte – Tanatos – permanece como uma das principais forças impulsionadoras da existência, pois nos permite enxergar os extremos que, bebês, não víamos com clareza. O sentimento de que podemos nos desintegrar nos acomete a todo momento e são contra-balanceados pela pulsão de vida – Eros. Daí detestarmos ver fotos do assustador.com. Ali percebemos que podemos ficar daquele jeito: estilhaçados, estripados e com as carnes espalhadas pelo chão. Outros momentos são menos drásticos: o sexo, por exemplo, quando, no momento do gozo, desejamos nos fundir (não leiam errado) ao outro.

Esses pensamentos me vieram à cabeça após ler alguns versos do Álvaro de Campos (meu Fernando Pessoa preferido):

O horror e o mistério de haver ser,
Ser vida, ladearem-me outras vidas,
Haver casas e coisas em meu torno –
A mesa a que me encosto, a luz do sol
No livro em que não leio por alheio –
São fantasmas de haver... são ser absurdo
São o mistério inteiro cada coisa.
Haver passado, com gente nele, e outros
Presentes, e o futuro imaginado –
Tudo me pesa com o mistério dele,
E me apavora.

O que em mim vê tudo isto é o próprio isto!

É incrível pensar como somos parte nula da realidade total que transcende a condição temporal inventada pela mente humana. Há o livro que não li, o lugar que não conheci, a mulher que não beijei, o tempo que não conheci e tudo isso se conta ad infinitum. Resta-me o ser parco que possuo. E nesse ser, ser, em sonho, algo grande. Algo que importa ao mundo. Algo que, ao deixar de existir, fará com que gemidos de comiseração sejam ouvidos em todo o horizonte distante. É o que Campos vai chamar de “uma vontade física de comer o universo”.

Mas será ele mesmo quem decreta a inutilidade schopenhauriana da vontade. A respeito do post-mortem:

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas.

Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada. Absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala de ti.

Encara-te a frio e encara a frio o que somos...

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti porque é a ti que te sentes
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites de tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

E aqui, então, Campos conseguiu falar quase tudo o que eu queria. Aproveitando as férias continuarei estes pensamentos em outra ocasião.

sábado, dezembro 16, 2006

Das contradições...

Por que tenho que construir minha personalidade pautada na homogeneidade e no princípio de que a construção de minhas diversas faces tem que ser regida pelo princípio da não-contradição?
Por que tenho que ter explicações para todos os meus atos e tenho que guiá-los pela idéia de que eles devem ter certos fins e que eu deveria ser capaz de saber quais serão esses fins?
Ademais, por que tenho que saber onde meus atos desembocarão se não consigo nem saber quem eu sou hoje, se não sei quem fui ontem e muito menos quem serei amanhã? Aliás, amanhã eu serei alguém ou esse alguém será por mim?
Por que devo me responsabilizar pelas vidas dos outros se não consigo me responsabilizar pela minha própria vivência? Seria uma fuga o fato de que tento diariamente me fazer acreditar que
minha existência deve ser pautada no postulado de que é cotidianamente que se experencia o mundo?
Se é verdade o que uma grande amiga que faz papel de um xamã para mim disse e eu vim ao mundo para me satisfazer, enquanto que os outros têm que satisfazer a si próprios, por que sou cotidianamente construído a pensar e a sentir o mundo todo em minhas costas?
Por que quero me expressar e não saem mais palavras de minha mente, de minha boca, de meu corpo, apenas gestos que nunca verás, contorções, gritos internos, fluxos e refluxos de sentimentos, emoções, contradições, arrependimentos, dissociações?
Por que sou obrigado a aceitar o racionalismo se todas as minhas experiências me ensinam a rechaçá-lo com todas as forças de um coração partido, sangrando ou ainda vibrando por sangrar ou sangrando por fazer outros sangrar???? Por que alguns corações sangram por outros corações?
Por que??? Por que??? Por que??? Por que??? Por que??? Por que??? Por que??? Por que???
Repressões morais a parte, por que não conseguimos deixar de tê-las e sentí-las como uma dor lancinante que torna-se mediação simbólica de todas as experiências que temos, enquanto não conseguimos construir novas categorias que organizem nossas experiências em nossas mentes e corpos? É possível construir essas novas categorias?
Por que considero esse post tão ridículo e, ainda assim, teimo em publicá-lo???

domingo, dezembro 10, 2006

Análise das categorias nativas “amor” e “paixão” a partir do arcabouço conceitual criado por Zezé Di Camargo e Luciano.

Este é um post coletivo, criado por mim e Fernanda. Divirtam-se.


Cada volta é um recomeço
Zezé Di Camargo e Luciano

MAIS UMA VEZ
O CORAÇÃO ESQUECE TUDO
QUE VOCÊ ME FEZ
EU VOLTO PRA ESSE AMOR INSANO
SEM PENSAR EM MIM
PRA RECOMEÇAR, JÁ SABENDO O FIM

MAS É PAIXÃO
E ESSAS COISAS DE PAIXÃO
NÃO TÊM EXPLICAÇÃO
É SIMPLESMENTE SE ENTREGAR
DEIXAR ACONTECER
EU SEMPRE ACABO ME ENVOLVENDO
COM VOCÊ

REFRÃO:
NESSES DESENCONTROS EU INSISTO EM TE ENCONTRAR
COMO SE EU PARTISSE JÁ PENSANDO EM VOLTAR
COMO SE NO FUNDO EU NÃO PUDESSE EXISTIR
SEM TER VOCÊ

TODA VEZ QUE EU VOLTO
EU TE VEJO SEMPRE IGUAL
COMO SE A SAUDADE FOSSE A COISA
MAIS BANAL
E EU CHEGANDO SEMPRE
COMO UM LOUCO PRA DIZER
QUE AMO VOCÊ

QUE ME LEVE PELA VIDA AO CORAÇÃO
COMO VERSOS PRA CANÇÃO
VOLTO PRA VOCÊ, VOLTO PELO AMOR
NÃO IMPORTA SE É UM SONHO PELO AVESSO
CADA VOLTA É UM RECOMEÇO

MAS É PAIXÃO...

Ao analisarmos as categorias nativas “amor”, como amor romântico, e “paixão” utilizadas cotidianamente para apreender as experiências dos sujeitos em nossa sociedade, podemos perceber que elas mantêm uma relação fluida de diferenciação, se aproximando ou se distanciando de acordo com as situações em que são empregadas e com os sujeitos envolvidos nas mesmas. Essas duas categorias que replicam emoções aparecem muitas vezes fundidas e são entendidas como componentes de uma mesma relação. De fato, diversas vezes, as categorias amor e paixão são utilizadas como parte de um mesmo processo e, às vezes, como um mesmo sentimento ou emoção. Todavia, podemos notar também que há um processo de significação que aponta no sentido de diferenciar as duas categorias. É neste sentido que entendemos que “amor” e “paixão”, na sua comparação, são compreendidos de maneira fluida, pois embora possam se mesclar, mantêm algumas diferenças fundamentais. Tentaremos, portanto, expor a forma como essas categorias são utilizadas em diferentes situações, desde as suas similitudes às suas diferenças.

Amor e paixão geralmente definem sentimentos e emoções experenciados em relações que envolvem no mínimo duas pessoas, não necessariamente do mesmo sexo, e em que existe a possibilidade do intercurso sexual. Essas duas categorias se aproximam na medida em que definem situações que envolvem o “desejo carnal”. Nota-se, entretanto, que estamos nos referindo a um amor contemporâneo em que o desejo e a sexualidade são condições sine qua non da relação, em detrimento daquela visão passada de amor puro e inocente. Claro está, porém, que isso é uma escolha metodológica e que a categoria “amor puro” ainda existe na realidade das relações, ainda que acreditemos que ela tende a se dissipar frente às mudanças da contemporaneidade.

Também é importante lembrar que o desejo não necessariamente é recíproco e que nem sempre chega ao conhecimento de todos os envolvidos na situação, constituindo o famoso “amor platônico” ou a “paixão não-correspondida”. Outro exemplo de aproximação das categorias está no caso da “paixão à primeira vista”. Os nativos, quando interpelados sobre o que seria a paixão, evocam adjetivos como “súbito”, por exemplo. No entanto, esse adjetivo também é utilizado para entender o “amor à primeira vista”. Essas últimas categorias estão muito próximas, a ponto de sua diferenciação constituir um empreendimento metodológico de difícil apreciação, ainda mais quando não conseguimos manter um estranhamento suficiente das mesmas. Soma-se a isso a dificuldade em separar as categorias que os nativos em geral utilizam para apreender e compreender o mundo das nossas próprias versões dessas categorias, filtradas pela nossa experiência pessoal.

No entanto, embora existam aproximações entre “amor” e “paixão”, existem também diferenças. A paixão é sempre definida como algo delirante, incontrolável e, muitas vezes, passageiro. Os apaixonados são acusados de irresponsáveis por não serem capazes de controlar suas emoções e seus atos. São acusados de agir sem pensar, se expõem ao ridículo frente aos outros. O sujeito torna-se objeto da paixão, um simples joguete nas mãos do destino, como disse Shakespeare em Romeu e Julieta. Mas Romeu e Julieta não teriam vivido o maior amor de todo os tempos? Em que medida esse amor está imerso na paixão e vice-versa?

O amor, além da idéia de destino, envolve também a idéia de algo mais permanente, estável, sereno e definitivo, eterno. O amor remete principalmente a segurança. O amor é um processo, uma construção cotidiana que envolve companheirismo, confiança e cumplicidade. Dentro da visão de amor, o sujeito é capaz de abdicar do objeto de seu desejo em nome do bem-estar desse objeto, enquanto que na paixão a posse do objeto constitui a principal motivação do ser apaixonado. A paixão dá idéia de algo avassalador, que possui o amante como um demônio. O amante passa a não ter controle do próprio desejo, se entrega a ele. Mas se nem sempre os próprios apaixonados ou os que amam conseguem definir se o que sentem é amor ou paixão, existe de fato alguma diferença entre esses dois sentimentos?

Muitas vezes o que define a situação é a acusação do outro, como quando uma situação é definida como “simples paixão”, no sentido de que é algo passageiro e com o qual os envolvidos não deveriam desperdiçar seu tempo ou energia. No entanto, embora a “simples paixão” possa ser mal vista, a paixão que acompanha o amor certamente não o é. Mas seria todo amor acompanhado de paixão? Seria a paixão uma possível porta para amor?

Na música de Zezé Di Camargo e Luciano, essas duas categorias são utilizadas no que podemos definir como amor insano, que configuraria um processo de sentimento permanente, como no caso do amor romântico, e ao mesmo tempo dominaria o sujeito a ponto de ele tornar-se o objeto desse amor insano, com a idéia de descontrole das próprias ações que envolve a paixão. A falta de explicações para os sentimentos do eu lírico da música remetem à idéia de destino. O amor insano não constitui uma categoria amplamente difundida, mas é um bom exemplo de como as categorias amor e paixão se fundem no processo de experenciar o mundo em que vivemos.

Para dificultar ainda mais o processo de definir relações, sentimentos e emoções a partir das categorias “amor” e “paixão”, nosso mundo assiste hoje ao surgimento de diversos novos tipos de relação que envolvem diferentes gradações de tempo e comprometimento que muitas vezes não se adequam perfeitamente às categorias existentes. No entanto, por falta de outras categorias ou devido ao processo muito recente de construção dessas outras, “amor” e “paixão” ainda são tomados mesmo que como referenciais negativos.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Experiências acerca doTempo e da Trajetória em contexto de Presente Perpétuo

Falar sobre Tempo é falar sobre a vida, a existência e sua experiência, o projeto eternamente inacabado chamado Homem. Em uma época onde a experiência temporal concentra-se majoritariamente no instante, perde-se a capacidade de acumular. Se por um lado cada experiência passa a ser única, por outro passa a ser, também, efêmera. É nesse sentido que o Homem na pós-modernidade não mais reconhece a própria trajetória. Imerso num presente sempre esfuziante e alucinante, vive sem olhar para trás, sem aprender como potencialmente poderia e, como resultado, acaba por não haver vislumbre de futuro algum. Este passa a ser ilusão: o futuro empobrecido passa a ser interpretado como o presente que chegou; o passado é o presente que passou. A trajetória não deixa de existir, obviamente. Apenas o seu reconhecimento é que sucumbe. O Homem tornado um ponto ao vento evidencia a morte do homem moderno: o Sujeito kantiano soberano, senhor de si mesmo; o Ser absoluto de Hegel, auto-consciente; o além-do-homem, ser dançante nietzscheano e o homem-projetável sartreano – resta, talvez, a máscara caquética destas construções.

Tenho vivido alucinadamente a minha vida cotidiana, conforme me prega a moral hedonista dominante. E alucinadamente não significa necessariamente prazerosamente, mas apenas “com ausência de tempo”. Vamos fazer isso? Não posso. Estou sem tempo. Estas são as três sentenças que bem representam a contemporaneidade. E com isso minha vida ia sendo vivida sem mim. Sem que eu me desse conta de que existe algo chamado tempo e que minha trajetória é um continuum de é, foi e está sendo dentro deste tempo. E que, ainda no tempo, minha trajetória findará.

Os homens pré-modernos e modernos viviam sempre em reflexão acerca de si mesmos. Não porque a Filosofia estivesse na moda, mas simplesmente por ausência de atividades que ocupassem a própria mente. Meu avô passava horas na beira do rio pescando quando era jovem e dizia que ali, naqueles instantes a sós com os peixes, ordenava toda a sua vida na própria cabeça. Hoje em dia, quando tempo temos, tratamos logo de ocupá-lo com algum barulho que nos remeta ao presente perpétuo. E eu já falei acerca disso em outra oportunidade. Fato é que não suportamos mais pensar sobre nós mesmos. Vamos vivendo a vida como ratos em labirinto em experiência de laboratório: onde der para ir a gente vai; quando aparecer obstáculo a gente desvia. É uma forma covarde de não sentir o peso da estrutura social: ao invés do combate, a subordinação total. Baudrillard, no entanto, nos diz que essa subordinação é a forma extrema de combate, pois esvazia a estrutura de sentido. No hiper-fluxo de Signos não há significação alguma. Daí voltamos ao barulho. Que é o barulho? A super-exposição dos canais auditivos à fontes sonoras intensas e variadas. Que se apreende do barulho? Pouca coisa. Talvez uma ameaça potencial. Talvez um aliado do prazer, como nas discotecas. De qualquer forma, nunca se apreende um continuum de Sentido. Apenas inserções pontilhadas constantes de Sentidos Sem-Sentido, sem história, sem trajetória. O iPod é um dos principais instrumentos desta pós-modernidade que rejeita a trajetória. O ônibus para a Faculdade, um dos meus momentos de mais profunda reflexão filosófica, foi tomado por dois fones de ouvido que me distraem. Sim, apenas me distraem, me entretém, enquanto a vida passa sem que eu me dê conta. No labirinto obstaculático do ônibus, arranjo uma forma de seguir em frente, sempre em frente, para um lugar qualquer, para lugar algum.

E, de repente, em um momento de breve devaneio, olho pela janela do quarto de meus pais, do alto do 11º andar e vejo dois pontos no estacionamento. Dois idosos sentados a conversar. E penso. Meu Deus! O tempo passou... E neste momento pensei, como era costume meu avô fazer, a respeito de mim mesmo. De onde vim e para onde vou. Pensei em minha trajetória no tempo estrutural. E as coisas que achei nesta escavação sorumbática e macambúzia me fizeram acordar de todas estas lamentações anacrônicas e melancólicas. Diante do horror de me ver nu ao espelho da consciência, corri apressado, apanhei o mp4 e escutei meu barulho essencial. A busca da trajetória marca o fim mesmo da trajetória deste Homem letárgico e em torpor do presente perpétuo.