segunda-feira, outubro 30, 2006

Nietzsche, Parsons e o Crime

Estava retornando da Faculdade para casa em uma manhã rotineira: vazia, sonolenta e triste. Como de costume, estava no ônibus, dividindo meu tempo entre breves cochilos e devaneios filosóficos. Ao parar no ponto de ônibus do Hospital Sarah (vou escrever só Sarah, pois não sei escrever Kubistchek), uma cena insólita acontece: um ladrão rouba a bolsa de uma garota que, como defesa, começa a gritar muito. A confusão se estabelece: eu despertei de devaneios e cochilos; as pessoas se alvoroçavam, gritavam “pega ladrão”, comentavam o ocorrido e lamentavam a situação de insegurança que acomete a todos aqueles que não podem se trancar em guetos voluntários de elite; os ladrões correm. Eu permaneci em meu lugar. E confortavelmente sentado vi os três ladrões atravessarem a Avenida Tancredo Neves. Eram menos do que adolescentes e o mais velho não aparentava ter mais de doze anos de idade. O que carregava a bolsa beirava os dez anos. Era claro que a correria tinha um destino: um matagal próximo. De repente, surge o segurança de uma loja de móveis com arma em punho e bang! Dois tiros se ouvem. Mais alvoroço. O segurança mirou claramente no peito dos meliantes. Graças a sua imbecilidade congênita errou o alvo. Os garotos ladrões fugiram. A vítima ficou no ponto de ônibus. Este, por sua vez, seguiu viagem. Eu voltei aos meus devaneios. E a manhã rotineira: vazia, sonolenta e triste.

Contudo, flagrei-me em devaneios que levaram em conta a situação passada. Ouvindo a manada mugir que ladrões deveriam ser extintos da face da Terra, lembrei-me imediatamente de Nietzsche, para o qual os criminosos são homens fortes – super-homens – em situação desfavorável. Para o filósofo, a moral cristã enfraqueceu os homens e os incita a permanecerem quietos e dóceis, mesmo quando explorados – a recompensa estaria no reino dos céus. O criminoso, no entanto, não se deixa enganar como a manada pacífica: quebra as normas e cria as suas próprias – a sobrevivência digna como fim em si mesma. Se ninguém lhe reconhece a dignidade, então que sofram as conseqüências. Na sociedade de consumo a situação se agrava, pois os indivíduos são inseridos na sociedade através de seu potencial econômico. Esta é a nova condição de cidadania: a substituição do cidadão pelo consumidor. No entanto, o desemprego estrutural tem alijado milhões de pessoas da esfera do consumo. Que fazer, então? A manada vai para a Igreja Universal. Os fortes vão para o crime.

Obviamente, não gostaria de ter sido a vítima dos marginais. A questão aqui não é de complacência com os criminosos, vontade de ser seu amiguinho ou de assumir o lugar de suas vítimas. Trata-se, aqui, de uma tentativa de análise amoral dos fatos. Também não é uma análise ao nível individual, mas estrutural. E a estrutura excludente fabrica ladrões de dez anos de idade. Podem criar FEBEMs. Elas irão profissionalizá-los.

Também é certo que, desde Durkheim e mais especificamente com o funcionalismo parsoniano, o crime é, ao nível sociológico, encarado como patologia social, disfunção ou desvio. De fato, também é verdade que, independente das causas do crime, a sociedade criará mecanismos de punição aos criminosos. Isso é o óbvio. Não fosse o Parsons tão imbecil perceberia, contudo, que os índices de criminalidade variam de sociedade a sociedade e, na mesma sociedade, de tempos a tempos, devido não a disfuncionalidade intrínseca previsível em qualquer sistema social, mas devido a condição social na qual vivem parte dos indivíduos em relação àquilo que a sociedade considera a vida digna. Daí diferenças de criminalidade entre Suécia e Brasil se explicarem ao nível social e não em referências a essências suecas ou brasileiras.

Resumindo. Ao nível social, a desigualdade cria o criminoso. É aquela velha questão do "a sociedade cria o crime, o criminoso o executa". Ao nível filosófico, este é o homem forte, que se recusa a ceder às falácias da Igreja Universal e vai de encontro a toda moral judaico-cristã estabelecida - se a moral é ajudar o próximo, este o estraçalha. Ao nível individual, que cada um se proteja! Estamos na sociedade do individualismo extremo onde a máxima é “salve-se quem puder”!

7 Comments:

Blogger Antonio Rimaci said...

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12:05 AM  
Blogger Antonio Rimaci said...

Excelente. Mas Parsons n era tão imbecil assim: a condição de desviante n é mera exceção numa sociedade, sem que nada possa ser feito no sentido de diminui-la ou aumenta-la. Claro que as condições sociais funcionam como reguladoras da formação de desviantes. A pobreza incentiva os desvios, e isso explica as diferenças entre Brasil e Suécia. Mas não só a condição social, no seu sentido economico. Tanto não, que há crimes na Suécia. Como então explicá-los?
afirmar que existirão desviantes por uma falha previsivel de qualquer sistema social não é necessariamente dizer que não existem outros fatores ou condições reguladoras desses desvios. Ou seja, como diria um famoso filósofo do qual esqueci o nome, " Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa". Não seja tão mal com Parsons. Ele já tem mtos defeitos! rsrsrs

12:09 AM  
Blogger Antonio Rimaci said...

ah, e vc me fez lembrar de um post que eu ja deveria ter escrevido. Tb presenciei um roubo há pouco tempo. Mas meus devaneios foram outros...

obs: o "mal" da ultima frase do outro comentario é "mau". Falha nossa!

12:13 AM  
Blogger Fernanda Furtado said...

Finalmente estamos movimentando esse blog. Agora que já voltamos ao individualismo, à manada e a Nietzsche podemos nos considerar subterrâneos de verdade.

10:18 PM  
Anonymous Anônimo said...

Hum...
Interessante a nova visão de super-homens ...
Acho q se Nit estivesse vivo estaria, após ler este post, filosofando um novo conceito de homem forte...
A meu ver seriamos todos super-homens... os ladrões, pelo fato de ser vítimas revoltadas, reflexo da segregação social... os donos da Universal , por conseguirem mais fiéis adoradores enquanto enchem seus bolsos... ou talvez o super-homem mensalão, aquele q na sua forma mais sínica põe a cara na tv e diz " cabe mais dinheiro na cueca"... não seriam tmb os fortes aqueles que olham toda essa movimentação e exposição de força, digna dos super-homens modernos, com indiferença... ou aqueles que se munem bélicamente para acabar e se proteger do mal violência... Sim!
O homem moderno não tem crença, não tem deus, seriam eles super-homens? Todos eles muito confiantes ... o próprio sistema leva ao individualismo e aqueles q não desenvolve o "eu em primeiro lugar" não sobrevive... Bem vindo a sociedade dos super heróis!

3:54 PM  
Anonymous Anônimo said...

De fato, para Nietzsche, Deus morreu. Independentemente da postura individual perante o mundo e a existência, essa realidade seria incontornável. No entanto, já em Nietzsche estava presente a idéia da ressureição de Deus, devido a fraqueza humana que faria com que seres do rebanho o buscassem. Numa sociedade secularizada também há espaço para o divino, como nos ensina Weber. No entanto, a força do além-do-homem não está em sua capacidade de ser corrupto ou de corromper a outros, ou de enganar no sentido mesquinho da palavra. A força está na vontade de potência, que é uma atitude muito mais natural do que social. Na verdade, é justamente o aspecto social que leva à corrupção: o querer se dar bem em uma sociedade de consumo. Nesse sentido, a corrupção é um ato moral: quem a faz tem consciência de que comete uma infração. A ação do além-do-homem, por sua vez, está no plano além do bem e do mal: no plano da vontade apaixonada de vida. O que é bom? Responde Nietzsche: tudo aquilo que afirma a potência. Mas o que é potência? Eu respondo: tudo aquilo que supera a moral. Mensaleiros e pastores da Universal não entram aí.

12:58 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ah. E lembre-se que o que vc chama de sociedade dos super-heróis é a sociedade que alimenta os espertinhos (apenas isso, nada de super-homens) da Igreja Universal. É a sociedade de massa, da manada. A sociedade daqueles q defendem uma moral caquética apenas para se verem livres, em paz, enquanto a maioria da população vive na miséria (não apenas material, como pensava Marx, mas existencial). A sociedade que ensina, como na Bíblia, "não roubarás", enquanto rouba vidas e dignidade. Não. Definitivamente não estamos em uma sociedade de super-heróis.

10:30 PM  

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