terça-feira, setembro 12, 2006

A Era do Gelo e a era do aquecimento global

Pode parecer estranho, mas A Era do Gelo II é o melhor filme dentre os que assisti nessas ultimas semanas. Não pela história em si. Não pelo esquilozinho, coitado, que sofre horrores pra salvar sua comida. Mas sim pelo interessante conceito de personalidade que o filme ( intencionalmente ou não) traz.Não quero tirar a graça da surpresa daqueles que ainda pretendem ver a animação. Basta dizer que, na história, uma Mamute tem a convicção, a plena convicção, de que é um gambá. Obvio que se trata de um detalhe que retoca o humor de historinha infantil, mas não é só isso. Não passa de um detalhe para quem não procura pêlo em ovo ou agulha no palheiro, como esse que vos fala.

Em primeiro lugar, é um universo em que os animais raciocinam, dialogam, e refletem sobre sua condição de existência, e os amigos devem saber que no nosso "mundo real" apenas um animal carrega esse fardo: nós, esses bichos esquisitos, sem pêlos e garras, que não têm nenhum outro dom mais útil que o seu cérebro enorme. Animais que são psicologicamente humanos, possuem necessidades psiquícas humanas, é claro. Posso afirmar, com toda a certeza que uma pessoa pode ter, que Mamutes não alimentavam quaisquer dúvidas a respeito de sua "mamutilidade", como nenhum cachorro duvida que é cachorro. É muito mais fácil pra eles, porque seu pool genético responde todas essas questões supérfulas possibilitando sua concentração na sobrevivência, pura e simples. A preocupação do nosso mamute confuso nada mais é que um reflexo do carater humano que as animações em geral tem que dar aos aminais e outros seres.Nós, humanos, necessitamos responder, de imediato, algumas questões: o que estamos fazendo aqui? para onde vamos depois daqui? o que é certo fazer por aqui? e ainda, quem sou eu, o qual o meu papel aqui? Essa é a questão que o mamute responde no filme de um jeito, digamos, peculiar.

Essas respostas foram sempre dadas ao longo da história, em cada tempo e em cada sociedade, de formas singulares. Hoje em dia, o conceito de "eu" está desenvolvido no seu máximo. Somos talvez a primeira sociedade na historia desse planeta que consegue defender a idéia ( pelo menos ideologicamente) de que cada individuo é único, tem valores e qualidades idiossincráticas, e, portanto, deve ser livre de amarras e limitações. "seja autêntico", " faça seu estilo", são coisas que se ouve frequentemente hoje em dia, talvez mais até que "bom dia" ou "obrigado". Trazem uma ideia de personalidade tão individualizada quanto possível, e isso acaba tendo duas consequências "vantajosas": milhões e milhões de "estilos próprios" para o mercado de roupas, musicas, livros etc, preencherem; Uma despolitização e falta de percepção de um mundo social, da articulação dos interesses, que trava qualquer tipo de ação "subversiva", organizada e em massa, contra os absurdos do mundo capitalista.

Para apoiar tão concepção, o desenvolvimento de "explicações" genéticas para as ações, estilos e prefências individuais servem como referência científica. É interessante como tudo isso, todas essas respostas, que são socialmente construidas e individualmente compreendidas, ganham um ar de naturalidade, quando o são, de fato, escolhas arbitrárias de um animal que precisa simbolizar para conseguir viver. A medida dessa arbitrariedade torna-se visível quando constata-se que essa liberdade ou singularidade do individuo é uma grande mentira. Estamos todos sujeitos as leis e normas sociais e, em certa medida, somos muito mais parecidos que diferentes. Apenas queremos acreditar que somos únicos, "eu mesmo", assim como o mamute quis crer que era um gambá. Enxergar que tal processo é arbitrariamente humano, é o primeiro passo para diminuir sua fatalidade e interferir nessa inércia que se tornou a sociedade ocidental. É o primeiro passo para entendermos que essa forma de significar a realidade ( não discuto se ela é boa ou ruim. Não é ela quem precisa mudar, e sim as consenquências que ela traz)não pode estar pautada numa áurea de naturalidade que nos impessa de agir de forma mais socialmente articulada.
Agora eu pergunto, caro leitor, você está pronto para rever esses conceitos? não, claro que não. Ninguém está, nem mesmo eu, que escrevo essas bobagens. É por isso que esse mundo não tem mais jeito... Você acha que tem??

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Muito bom, o texto. Consegue articular as necessidades existenciais do sujeito, com a especificidade deste na conjuntura capitalista tardia, bem como à macro-estrutura social. Na verdade é isso o que ocorre na vida real. A realidade social é um fato social total. Qualquer segmentação é lógica e analítica. O sujeito singular e único existe no seu cotidiano e isso alimenta a lógica da sociedade de consumo que enxerga indiferenciadamente uma única categoria: o consumidor. Olhando micro vemos apenas seres que se diferenciam. Olhando macro vemos apenas a indiferenciação absoluta. Olhando holisticamente vemos o sujeito e a estrutura.

11:39 AM  
Anonymous Anônimo said...

E um comentário adicional, esdrúxulo e dispensável: a mídia deseduca tanto que, enquanto o planeta vive o aquecimento global, ela fala em era do gelo. rs

11:52 AM  
Blogger Victor Scarlato said...

Caro Antonio,

Apesar de toda uma inércia social, creio que possamos melhorar sim este corpus social. Concordo com Felippe quando o mesmo diz que o consumo nos acomete de modo brutal, até mesmo nefasto. No entanto, penso que não devemos mais ficar neste sentimento nostálgico do qual nem experienciamos - a época dourada das reivindicações sociais durante a Ditaudra Militar.
Lutar contra uma ditadura, ainda por cima militarmente repressiva, é algo que se mostra mais fácil para que se tome uma atitude. No entanto, lutar contra uma forma de controle mais velada, o capitalismo pós-industrial, é algo que se mostra mais complexo. Ainda assim, várias ações estão sendo traçadas, basta que nos apercebamos dos mais diversos movimentos das "minorias", aqueles contra a mundialização e etc.
Porém, tenho que concordar contigo, devemos acelerar mais esta dinâmica. Mas, não creio que estamos num beco sem uma mínima possibilidade de saída. E em relação aos conceitos, isto sim é deveras complicado. Até que ponto conseguimos deixar de ser etnocêntricos ou apenas deixar de ser convenientes nos momentos que nos são impostas algumas conjunturas? Talvez, em especial para nós brasileiros, o maior problema a ser enfrentado é o nosso ser conveniente.

Abraços

3:55 AM  
Blogger Fernanda Furtado said...

Antônio,

Se serve de consolo, o pool genético do seu cachorro (e de vários outros mamíferos) não está preparado para dizer a ele que ele de fato é um cachorro, e ele pode até pensar que é gente, de tanto conviver com você. A vantagem é que ele não vai ficar pensando sobre isso e nem vai escrever um artigo chamado "A naturalização das formas caninas de viver". Então voltamos ao problema da consciência que nós humanos, e especialmente nós desse blog, gostamos de pensar que temos. Ao invés de tentar rever meus conceitos, eu estou mais para aproveitar essa tática da ciência e naturalizar todas as coisas que eu quero que sejam defendidas. Bem, pelo menos nós temos consciência de que não vamos fazer nada a respeito. Os cachorros não tem nem isso!
Adorei seu post e também sou fã desse filme. Bjos

3:59 PM  
Anonymous Anônimo said...

A sociedade do espetáculo já tratou de evitar que as pessoas pensem. Basta que elas vivam irracionalmente sua "singularidade" mercadológica. Mas quem sabe a dúvida existencial não seja mesmo uma condição humana e o homem-massa um dia volte a se questionar? Neste dia o sistema estará em risco, como esteve na era dos extremos, o século XX, como visto por Hobsbawn...

6:20 PM  

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