terça-feira, agosto 29, 2006

O que é pior?

Começo com uma assertiva básica: Todos os citadinos, ou pelo menos a maioria deles, são "tabaréis" urbanos.
A heterogeneidade de mundos tanto físicos, no sentido espacial da palavra, como simbólicos e culturais, faz com que as pessoas percam a dimensão da sua cidade. As pessoas não conhecem a sua cidade e viajar dentro dela, mutatis mutandis, pode ser comparada às viagens dos primeiros "antropólogos", em busca do exótico. Não acredito que seja necessário chegar àquela viagem do xamã proposta por DAMATTA. Aquela em que o estudioso viaja para dentro dele mesmo, na tentativa de transformar o familiar em exótico. Na cidade "grande" e "complexa", qualquer pessoa criada num bairro de classe média ou criado num bairro popular que se ache no contexto totalmente oposto terá, num tom de hipérbole, quase que a mesma impressão de Colombo, ao ver os índios, salvo a exceção de que essas pessoas, provavelmente, já viram esses mundos diversos na televisão. Se não fosse a televisão ou o imaginário coletivo, não seria necessário aquele mutatis mutandis ali em cima.
Mas, vamos ao tema desse post. O que é pior, um citadino da classe média que ignora o restante de sua cidade por não precisar dela em nenhum momento ou um citadino de classe média esclarecido (igual aos déspotas) pelo conhecimento sociológico, mas que continua ignorando a realidade social cotidiana do restante da sua cidade?
Vejam o que escrevi em um diário de campo quando fui a primeira vez a um dos bairros populares em que estou trabalhando:
"O que vimos foi um mar de casas disformes e amontoadas, dando a impressão de um verdadeiro mar de pobreza."
"Essa segunda visita nos mostrou também que a impressão que tivemos na primeira visita foi exagerada em se falar de um mar de pobreza. A área possuía várias ruas asfaltadas, casas de bloco, de certa forma consolidadas e possuía também um pequeno edifício bem estruturado. A despeito dessa consolidação, é possível considerá-la uma área popular de invasão pela própria arquitetura das casas, com quatro pilares chamados de palito e com uma construção fechada, chamada de caixão. Além disso, a falta de espaços, de áreas verdes e a verticalização revelam também características de maior pobreza do lugar."
Falando do segundo bairro:
"Descendo essa rua, avistamos algumas casas disformes, feias e superpostas nas encostas. Entretanto, nessa área o seu número era menor. Na verdade, nas áreas percorridas, presumi-se que as áreas antes consideradas invasões, devido à própria luta da comunidade, foram melhorando aos poucos e não têm mais aspectos do que geralmente se entende como favela, ou seja, em todo o caminho percorrido não avistamos nenhuma invasão ou favela tão grande, talvez pela topografia e tamanho do lugar, que favorece a dispersão das invasões."
"Na volta, refletimos e compreendemos que o próprio estigma criado pela sociedade nos fez pensar que íamos encontrar grandes favelas, o que não ficou claro, pelo menos nos lugares onde andamos."

O que é pior, portanto, o etnocentrismo da classe média que ignora o seu meio circundante, estigmatizando os pobres como classes perigosas e as favelas ou invasões como o reduto do crime organizado ou o estigma materialista de uma classe que se julga intelectual e que acha que as novas formas do desenvolvimento do capitalismo tendem uma produzir maior polarização social?

3 Comments:

Blogger Antonio Rimaci said...

Um colega nosso diria: " que sinuca de bico!". E é mesmo. Refletindo sobre a ciência como algo que demanda mais que produção de conhecimento,ou seja, com deve ter um quê de responsabilidade pela aplicação do conhecimento produzido, é fácil concluir que o problema se torna mais grave quando essa camada reduzida de nossa sociedade - cientistas e pseudo-cientistas - se comporta de forma, digamos, pouco crítica em relação ao desenvolvimento das favelas.Mas no seu caso, meu caro, eu entendo que temos um exemplo claro do choque decorrente do contato imediato com uma realidade que você não aprendeu a "decifrar" simbolicamente. Isso, covenhamos, é bem natural. O que não é correto, e sei que você não segue esse caminho, é buscar confirmar no primeiro contato noções pre-concebidas, o velho etnocentrismo. A ciência não deve servir parar justificar o etnocentrismo, contudo ser cientista não lhe livrará imediatamente de todos os seus preconceitos. Afinal, somos todos etnocêntricos até o confronto com a realidade. Sermos ainda etnocêntricos depois dele, ai sim, é um comportamento incompatível com a produção científica, sobretudo a da ciência do social. Portanto, não se condene tanto, pequeno burguês!

1:03 PM  
Anonymous Anônimo said...

Mas continua a realidade: pobres são pobres e ricos são ricos. Afinal de contas vivemos no país que detém o título mundial de desigualdade social, junto com mais dois pés-de-chinelo. Mas que o pobre vive e produz um universo simbólico de significado, além de ter um mínimo de condição material, é um truísmo. O que não podemos é, ao descobrir isso, folclorizar a miséria social que grassa por estas terras esquecidas, mas ditas do futuro...

12:45 PM  
Blogger Victor Scarlato said...

Caro Arantes,

Como disse Rimaci, não se condene a esta esfera de brutal martírio, uma vez que você não deixou muitas saídas para você, além de ser integrante da classe média, você também é um futuro cientista social. No entanto, em mais um ponto de concordância com Rimaci, a "nossa" tarefa é a de descer ao mundo e tentar verificar o que comporta tais dinâmicas; o tempo de contemplação deve ficar para trás, juntamente com a Grécia dos grandes filósofos.

Ainda assim, é necessário que pensemos em um ponto: ao abandonarmos nosso etnocentrismo, ou como Dürkheim disse, nossas pré-noções, por completo, estamos fadados ao zero. Não podemos produzir, nem sequer levantar questões sem essas pré-noções. Ainda vale dizer que, o etnocentrismo (entendido aqui não no seu sentido vulgar) é essencial para a formação identitária de uma nação, em especial a brasileira que ainda não encontrou tal direcionamento. Obviamente, não somos agentes que devem ser movidos por este etnocentrismo (aqui tomado no sentido vulgar) que assola as nossas mentes, desde quando aprendíamos história no primário.

12:05 AM  

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