segunda-feira, setembro 11, 2006

Breve conto sob influência de Dostoiévski

Um dia qualquer. Ele, que não lembra de seus sonhos em sono, acorda com todos os sonhos do mundo, como diz o Pessoa. Sente-se malditamente bem ao pôr os pés no chão, após alguns momentos silentes sentado na cama, com os cabelos desgrenhados e os olhos semi-cerrados. Pensava no que faria durante o dia, pois tinha a mania de planejar as suas ações cotidianas (aquelas que ele faria mesmo sem planejar, como um autômato que talvez fosse). Enumerava mentalmente: urinar; lavar o rosto; estralar os dedos; tomar café; sentar no sofá; ligar a tv etc. Valorizava demais as ações mais banais da vida diária e chegou a formular um sistema filosófico inconsciente para justificar seu fracasso sempre que pensava em fazer algo que desviasse do rumo da banalidade e do vazio. Como no dia em que planejou convidar uma garota para sair. Já vinha reparando nela há algum tempo e lhe chamava a atenção a inteligência aliada à beleza. Mas nunca soube como abordar uma garota: tomado por um romantismo anacrônico nunca foi capaz de entender como os rapazes de sua idade abordavam garotas de forma tão direta, descompromissada e, pior de tudo, vulgar e, ainda assim, alcançavam seu objetivo. Sua abordagem honrosa sempre lhe rendeu terríveis e dolorosos fracassos. Enquanto conversava com uma garota sobre as coisas belas da vida, um terceiro pedia o telefone e dizia sem rodeios que a telefonaria à noite para saírem juntos. A garota, após este intervalo de esquecimento dele, voltava-se para ele com um olhar compreensivo, como quem caritativamente escuta o que tem a falar, mas não consegue esconder o anseio de retirar-se dali. Mas insistia na tática, pensando consigo mesmo que um dia encontraria a garota que cairia a seus pés devido a sua forma de abordá-la. E esta, pensava, será a verdadeira merecedora de toda a minha paixão. Julgava que desta vez não haveria erro. A garota em questão seria conquistada. Acordou com esse intuito e levaria tudo às últimas conseqüências. Passou o dia a pensar em cada frase, em cada palavra, em cada gesto a dirigir a ela. À noite, no último dia de aula, sentou-se ao lado dela. Conversaram bastante sobre diversos assuntos sobre os quais a manada nunca compreenderia. E, de fato, rostos perturbados e perplexos encaravam os dois a conversar, como a questionar como duas pessoas poderiam passar a aula inteira sem prestar a mínima atenção ao professor e, ainda por cima, para conversar sobre assuntos como aqueles. Mas nada atrapalhava a fluência do colóquio. A empatia era total. Era chegada a hora decisiva, o momento pelo qual esperou ansiosamente, o instante de pôr em prática aquilo que havia minuciosamente treinado. Mas um calafrio o perpassou subitamente. Pensou ter encontrado a garota dos sonhos e temeu jogar tudo por água abaixo em uma cartada arriscada e, quem sabe, precipitada. Resignou-se e, por um momento, o silêncio pairou sobre os dois. Ela puxou algum assunto. Ele, atordoado, pediu para que ela repetisse, pois não fora capaz sequer de escutá-la. A conversa voltou a fluir por uns instantes. Alguns minutos e ambos se despediram, cada qual tomando uma direção. Hoje se vêem esporadicamente e se tratam de maneira fria. Mas naquela noite ela não conseguiu dormir antes da alta madrugada, pois seu pensamento estava fixo no rapaz doce e poético que, no entanto, não tinha interesse nela. Lamentou-se pelo seu azar e convenceu-se de que seu destino era arranjar-se com algum rapaz da manada, grosseiro e maquinal. Ele, por sua vez, pensou ter feito a coisa certa ao nada fazer, pois havia se convencido de que seu destino era a solidão e que seu sistema filosófico inconsciente estava correto: tudo o que se distancia da banalidade e do vazio estão irremediavelmente fadados ao fracasso.

4 Comments:

Blogger Victor Scarlato said...

Caro Felippe,

O seu breve conto é a verdadeira extrapolação do ser impotente ao qual nos acomete. Ao ler algumas de suas palavras, deparei-me com algumas lembranças minhas. E, em relação ao mundo atual, composto por uma objetividade brutal nas relações, as maneiras de se conquistar mostram-se cada vez mais diretas e as de antes, banais. Ainda assim, não consigo me isentar de todo um sentimento romântico.

Belo texto

2:16 PM  
Blogger Fernanda Furtado said...

Felippe,
Adoro suas palavras, mas acho que podemos ir mais longe. Esse romantismo subterrâneo está nos consumindo...

5:33 PM  
Anonymous Anônimo said...

Que palavras bonitas!!! Viva poeta!!!
Acho que vou me ler mais Dostoievsky, até Shoppenhour (desculpa a ignorância, é assim que escreve?), vou me drogar - não para ter experiências interessantes, mas com intuitos menos honrosos -, e quem sabe até não peço para uma prostituta tísica cuspir em minha boca?
Só sei que essas experiências estão me deixando mais confuso e, quando achei que minha busca existencial acabara, ela recomeça, firme e dolorosamente existencial...

10:14 PM  
Blogger Antonio Rimaci said...

Nossa! Rafael, garanta-nos que sua familia não vai responsabilizar ninguém depois! rsrsrsrs
Belo texto, a cara de Felippe.

11:42 PM  

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